Cuba – Já nada será como dantes
António Barata
A luita e libertaçom dos presos políticos cubanos congregou governos e imprensa, democratas, reaccionários, esquerdas modernas, numha previsível e dirigida campanha “antitotalitária” e polos “direitos humanos”. Contrastante com esta euforia em torno de mais umha vitória da democracia contra o “comunismo” empalhado que o regime cubano há muito personifica foi o silêncio incomodado da generalidade da esquerda que se revê no regime cubano ou daquela que, nom se revendo nele, se empenha em denunciar e combater a agressom e o cerco de que Cuba é vítima e a prestar-lhe a sua solidariedade anti-imperialista.
A libertaçom de 52 presos polo regime cubano tivo enorme cobertura mediática e foi um momento alto da diabolizaçom da “ditadura” cubana que serviu para lembrar como é maléfico o marxismo e o comunismo e para enaltecer a livre concorrência, a democracia parlamentar e a oposiçom anticastristas ao serviço dos interesses norte-americanos, europeus e do Vaticano.
Liberdade económica acima de todo
Aquilo que realmente preocupa os meios ocidentais nom som as limitaçons das liberdades cívicas e políticas nem as violaçons dos direitos humanos em Cuba (como na Coreia ou na China), mas as limitaçons à liberdade dos negócios. O que os move (agora como no passado) é o facto de, vinte anos após o colapso do “socialismo real”, ainda existirem territórios e países fora da sua influência e fechados à livre iniciativa capitalista, à penetraçom e liberdade do grande capital, dos negócios privados e da especulaçom financeira. Do ponto de vista do sistema capitalista dominante, trata-se portanto de corrigir umha aberraçom, de libertar o capitalismo de Estado em vigor nesses países das amarras que o tolhem e o impedem de seguir o seu curso normal e natural, integrando-se no sistema capitalista mundial.
Que as cousas som assim, que as peroraçons em torno das liberdades e dos direitos humanos som mera retórica e propaganda é cousa facilmente demonstrada polos factos. Em matéria de direitos humanos, tanto os EUA como a Uniom Europeia nom tenhem qualquer autoridade para dar liçons seja a quem for. Tal como em Cuba, e em número superior, apodrecem nas prisons dos EUA, Espanha, França, Alemanha, Bélgica, Reino Unido, Irlanda, Holanda, Polónia, República Checa, Itália, Grécia, Suíça, milhares de presos políticos que nom som reconhecidos como tal, apelidados de terroristas ou nem isso, sujeitos a tortura, incomunicáveis e, nalguns casos, condenados à morte, prisom perpétua, a absurdas e desumanas penas ou ao seu prolongamento arbitrário. Todos estes países abrigam prisons e centros de tortura secretos ou dam-lhes cobertura política, diplomática e logística, formam torturadores e tenhem unidades especializadas em execuçons extrajudiciais.
Por outro lado, nom sendo o regime castrista nem revolucionário, nem umha emanaçom da vontade popular, nem justo, nem livre, a verdade é que é um paraíso de liberdade e igualdade social quando comparado com as democracias da América Central e do Sul, em particular com aquelas em vigor nos países “libertados da ameaça marxista” polos sicários do imperialismo nos anos 80 e 90. Em Cuba os jornalistas, os sindicalistas e os opositores políticos nom som torturados e assassinados como é vulgar no México, Colômbia, El Salvador, Brasil, Nicarágua, Honduras, Chile, Argentina, Bolívia, etc., nem existem esquadrons da morte. A pobreza e a desigualdade social, o crime e os tráficos estám a anos-luz daquilo que se conhece no resto do mundo. O direito à educaçom e à saúde (do mais avançado que se pode encontrar) estám garantidos, tal como (por enquanto) o emprego. Cuba nom tem bairros de lata nem conhece os flagelos da droga, dos meninos de rua, nem bandos de indigentes a sobreviver do que encontram nas lixeiras. A populaçom nom é obrigada a beber água contaminada como na maioria da América Latina e do Terceiro Mundo.
Pintados estes presos políticos cubanos como pacíficos campeons dos direitos humanos e da luita polas liberdades, vítimas de cabalas e processos revanchistas e kafkianos, os factos conhecidos demonstram que nom é bem assim. Os presos agora libertados forom detidos em 2002 e julgados em 2003 por estarem implicados no Projecto Varela, o qual tinha por objectivo derrubar o regime por todos os meios – sabotagens, atentados e criar condiçons para se desencadearem acçons armadas realizadas por grupos da reacçom cubana sediada em Miami. O projecto, inspirado por Bush, destinava-se também a “encontrar as provas” e a preparar as condiçons para umha invasom das forças armadas dos EUA a pretexto de que o regime cubano estava na posse de armas de destruiçom maciça, nomeadamente biológicas (um processo semelhante ao que levou à invasom do Iraque). Dispunha de um financiamento de 40 milhons de dólares e contava com a colaboraçom activa da máfia cubana.
A transiçom
Mas constitui um sinal claro de fim de regime esta luita sem precedentes dos presos políticos anticastristas, tanto polo recurso à greve da fome e à determinaçom em a levarem até às últimas consequências, com polo envolvimento directo da Igreja Católica, que nom só protestou, como organizou acçons de rua e mediou as negociaçons entre os presos e o regime, a par da evidente dificuldade e falta de tacto e sensibilidade das autoridades cubanas para lidar com o problema.
O pronunciamento, em meados de Setembro, de Fidel Castro declarando que “o modelo cubano já nom funciona, nem para nós”, mais que sancionar as tímidas reformas empreendidas polo seu irmao no sentido de liberalizar a economia, abrindo-a à pequena iniciativa privada, significa que se avizinham mudanças profundas na economia, abrindo-a cada vez mais à iniciativa e propriedade privada, e que o regime nom vai abrir mao da transiçom do sistema de capitalismo de Estado em vigor para um outro – misto, segundo o modelo chinês, ou de capitalismo pleno, tal como existe no resto do mundo.
Dado igualmente significativo desta evoluçom foi o anúncio, dias depois, de que o Estado iria despedir meio milhom de funcionários no próximo ano (12% do total), nos Ministérios do Açúcar, Saúde, Turismo e Agricultura, medida sintomaticamente aplaudida e justificada pola Central de Trabalhadores Cubanos, que acha que o país “nom pode nem deve” manter quadros inflacionados e tem de aumentar a produtividade do trabalho, “reduzir os avultados gastos sociais e eliminar gratuitidades indevidas, subsídios excessivos, o estudo como fonte de emprego e a reforma antecipada”. Os trabalhadores despedidos serám indemnizados com um mês de salário por cada dez anos de trabalho (até agora recebiam 60% do salário enquanto aguardavam novo emprego), dinheiro esse que o governo quer ver empregue polos despedidos na criaçom do seu próprio negócio, reciclando-os em “novas formas de relaçom laboral-estatal”, um eufemismo para encobrir a nova política de incentivo ao pequeno capitalismo privado. Vam ser 500 mil desempregados num país sem recursos, pessoas lançadas no desemprego porque o Estado já nom as consegue sustentar. De que vam viver e como vam reagir agora que vam conhecer tempos penosos? E no futuro aqueles que, tendo visto os seus negócios vingar, comecem a achar que nom chega, que é preciso abrir e liberalizar mais e mais a economia e acabar com a tutela e os monopólios estatais?
Depois da dolarizaçom da economia entre 1993 e 2004, que constituiu o primeiro grande ataque ao sistema salarial cubano, até aí bastante igualitário – que, com as receitas do turismo, foi capaz de abrandar a dramática degradaçom das condiçons de vida e da economia, mas nom sustê-las – o fim do pleno emprego e a abertura controlada da economia ao capitalismo privado constitui o segundo grande momento de viragem do regime.
Pola primeira vez depois da revoluçom, Cuba vai conhecer o desemprego em massa e criar umha nova classe pequeno-burguesa de capitalistas privados, podendo o regime estar a iniciar algo que nom sabe como vai acabar. Estes dous acontecimentos também parecem indicar que terá chegado ao fim a discussom sobre a transiçom cubana e que terám vencido os que advogam o modelo chinês de transiçom para o capitalismo pleno, sob controlo do Estado e do Partido Comunista. Desta forma pensam prevenir-se contra o que aconteceu em muitos países do Bloco de Leste, onde a burguesia ligada ao aparelho partidário e de Estado foi arredada polas facçons burguesas emergentes. Ou seja, em vez de teimosamente se aferrarem ao modelo “estalinista” de poder e de nele se acantonar até serem corridos por umha qualquer “revoluçom” à romena ou de veludo, realisticamente tomam em mao a realizaçom das reformas necessárias a umha transiçom para o capitalismo pleno gradual e tam pacífica quanto se conseguir. O que certamente vai obrigar, como na China, a umha revitalizaçom e renovaçom da classe dirigente, em que a parte da burguesia ligada ao aparelho de Estado e ao partido terá cada vez mais de partilhar o poder com as restantes camadas e sectores da burguesia cubana.